A lesão do ligamento cruzado anterior (LCA) representa mais de 50% das lesões do joelho ocorridas durante a prática desportiva, com uma incidência anual estimada de 30-78 lesões por 100 000 pessoas, com particular destaque em adolescentes [9, 33].

A rotura do LCA tem indicação cirúrgica quando sintomática em doentes com demanda funcional moderada a alta, de forma a potenciar a reabilitação, o retorno à prática desportiva e a reduzir do risco de lesões intra-articulares associadas a longo prazo (lesão meniscal, condral e osteoartrose precoce).

Os tipos de enxerto disponíveis incluem os autoenxertos, entre os quais os tendões isquiotibiais (IT), o tendão patelar/rotuliano (OTO) e o tendão quadricipital, os aloenxertos e os enxertos sintéticos.

De acordo com as base de registo do LCA, tanto na Europa como nos Estados Unidos da América, mais de 95% das reconstruções recorrem a tendões autólogos de IT ou patelar [43]. Este texto focar-se-á apenas nestes dois tipos de enxerto.

Embora o tendão patelar (OTO) seja considerado o gold standard na reconstrução primária do LCA, particularmente em atletas [8, 18, 23], diversos fatores devem ser considerados na seleção do enxerto. Estes incluem a idade, o género, o nível de atividade, as lesões associadas, o risco de morbilidade da zona dadora, a estética da cicatriz do local de colheita e o tipo de fixação do enxerto [5, 18].

O enxerto ideal deverá apresentar propriedades similares ao ligamento nativo, não provocar morbilidade da zona dadora e permitir uma fixação e incorporação rápida [4].

Existem numerosos estudos comparando tendões IT com OTO na reconstrução do LCA. Todavia, deve ser tido em mente que muitas das meta-análises incluem estudos com IT com múltiplos feixes (2-5), não restringindo a comparação a IT com 4 feixes. Outra limitação metodológica consiste na inclusão e não distinção de reconstruções monofeixe e duplofeixe com IT.

Abaixo será apresentada uma revisão sumária da comparação entre os dois principais tipos de enxerto usados na ligamentoplastia do LCA.

BIOMECÂNICA

As características biomecânicas de cada tipo de enxerto variam durante o processo de incorporação, pelo que os valores apresentados refletem apenas o tempo zero após reconstrução. Em termos de ultimate load failure, tanto o OTO como os IT aparentam ser substitutos viáveis do LCA nativo.

Tabela 1. Comparação das características biomecânicas dos diferentes tipos de enxertos. Adaptado de [4]

INCORPORAÇÃO DO ENXERTO

A incorporação do tendão patelar (osso-osso) é mais rápida que a do tendão IT (tendão-osso), demorando 8 e 12 semanas, respetivamente  A ultimate load failure  do IT é inferior às 3 (45,8%) e 6 (85%) semanas relativamente ao OTO [1, 20, 26, 29, 38]. Um estudo publicado recentemente contraria esta teoria clássica, apresentando valores de deslocamento do enxerto no túnel ósseo similar entre os dois tipos de enxerto às 6 semanas e aos 12 meses . Atendendo à plausibilidade biológica de uma interface osso-osso obter resultados superiores na incorporação a curto-prazo, continuamos a sugerir maior prudência no aumento da intensidade, volume e complexidade dos exercícios de reabilitação no contexto de enxertos com IT.

FALÊNCIA DO ENXERTO/REVISÃO

Numa meta-análises incluindo 1272 atletas de elite, a taxa de falência da ligamentoplastia do LCA foi estimada em 5,2 % (2,8-19,3%) [6], aumentado para até 30-40% em coortes de atletas jovens [10, 39].

Estudos recentes apontam para uma taxa de revisão superior com tendões IT. [11, 22, 27, 28]. Uma meta-análise incluindo mais de 45 mil reconstruções do LCA confirma este achado [31]. A taxa de rerotura traumática é superior nos IT.

Em suma, a taxa de falência em ambos os enxertos é reduzida e praticamente equivalente, com ligeira vantagem para o tendão patelar (OTO) (2,8 vs 4,2%, OTO e IT respetivamente) . A taxa de falência do enxerto é significativamente superior em atletas jovens (< 25 anos) [10], sendo atenuada pela associação de tenodese lateral extra-articular [10] (ou reconstrução do ligamento anterolateral) [36].

ESTABILIDADE

Revisões sistemáticas (RS) recentes mostram não existir diferenças na estabilidade anteroposterior (teste Lachman ou medição instrumentada) entre os dois enxertos [31, 40, 44]. Em termos de instabilidade rotatória (teste pivot shift ou medição instrumentada), alguns estudos não detetam diferenças [31, 44], enquanto uma meta-análise revela que o OTO apresenta menor taxa de pivot shift positivo [40].

FORÇA MUSCULAR

Doentes submetidos a reconstrução com tendão patelar (OTO) apresentam maior deficit extensor e menor flexor, podendo estes deficits perdurar até 2 a 5 anos após cirurgia.

Relativamente ao uso de IT, os deficits dependem do número de tendões colhidos, sendo o deficit de força mais pronunciado em ângulos de maior flexão [35, 42]. O tendão Gracilis deverá ser preservado sempre que possível e o uso de tendões IT deverão ser evitados em desportos que impliquem flexão máxima e sprint.

Os protocolos de reabilitação devem focar-se no tipo de enxerto usado, particularmente no treino específico da força muscular.

RETORNO AO NÍVEL DE ATIVIDADE PRÉ-LESÃO

Existem múltiplos fatores que influenciam o retorno ao nível pré-lesão e não é claro que o tipo de enxerto seja determinante. Não existe consenso na literatura [24, 40, 44].

SCORES CLÍNICOS – Patient-reported outcome measures (PROM)

Múltiplas RS e meta-análises concluíram não existir diferença nos scores IKDC e Lysholm [37, 37, 44]. Estudos utilizando o KOOS também não detetaram diferenças [12, 34].

OSTEOARTROSE

A incidência de OA a longo prazo após reconstrução do LCA pode alcançar os 40% [25]. Apesar de uma recente  RS revelar uma incidência superior de OA com OTO [21, 25, 41], os restantes estudos não confirmam esta associação [17]. Nestes estudos são incluídas muitas reconstruções OTO não anatómicas, de acordo com a evolução da técnica cirúrgica ao longo do tempo.

Existem diversas variáveis confundidoras neste tópico, pelo que são necessários mais estudos para determinar o papel do enxerto no risco de desenvolvimento de OA em reconstruções anatómicas.

MORBILIDADE DO LOCAL DADOR

A dor anterior do joelho e dor ao ajoelhar são complicações mais frequentes com o uso de tendão patelar[19, 21, 37, 40, 44]. Quando se considera o uso de OTO, a morbilidade do local de colheita e o deficit de força extensora devem ser considerados, particularmente em atletas que tenham necessidade de ajoelhar com frequência. Relativamente à estética da cicatriz cirúrgica do local da colheita, a incisão para colheita dos IT apresenta menores dimensões (1,5-2 cm).

Tabela 2. Comparação da morbilidade entre o tendão patelar e IT [15, 30]

INFEÇÃO

Embora o risco global de infeção (0,48%) seja reduzido em ambos os tipos de enxerto, vários estudos mostram um risco aumentado (8x) de infeção com IT relativamente ao tendão patelar [2, 3, 45].

ALARGAMENTO TÚNEIS

O alargamento dos túneis é maior com tendões IT do que com OTO [13, 32]. Todavia, não parece existir qualquer correlação entre o alargamento e os resultados clínicos [32].

RACIONAL DA ESCOLHA DO ENXERTO

A seleção personalizada do tipo de enxerto é recomendada na cirurgia de reconstrução do LCA. Não existe um único enxerto apropriado para todos os doentes. Na escolha do enxerto ideal para cada doente, o cirurgião deverá ponderar múltiplos fatores relacionados com o próprio doente, com o enxerto e com a experiência do cirurgião.

 

O enxerto ideal deverá apresentar reduzida morbilidade na colheita, rápida integração e propriedades estruturais e biomecânicas similares ao LCA nativo. Apesar disso, cada tipo de enxerto apresenta as suas características específicas com consequentes vantagens e desvantagens associadas.

Tabela 3. Resumo comparativo entre tendão patelar e IT

Tabela 4. Indicações, vantagens, desvantagens e complicações do tendão patelar e IT. Adaptado de [4, 7]